domingo, 13 de agosto de 2006

O céu é o limite

Grande dia! Acordamos às 5:10am, num surto de adrenalina. O cheiro da manhã acompanhava um céu anil que aos poucos cedia espaço para a claridade do dia.

Já na Ox, nossa agência de viagem, conhecemos o resto do grupo que nos acompanharia: Sarah (uma risonha canadense), Lynndsay e Kirsten (irmãs holandesas maníacas) e uma americana genérica. Fora o guia, o Morgan (um americano do Alaska), seríamos os únicos homens da parada. Dado nosso exímio preparo físico de corredores de maratona, já passava o letreiro em nossas mentes: esperar essas tiazinhas podronas nos acompanhar vai ser sacal!

Traumatizados pelo atraso do dia anterior, arrumamos nossas mochilas pela técnica soca tudo e boa. Embora altamente eficaz, a técnica em questão trouxe-nos alguns efeitos colaterais peculiares: a surpresa de carregar montanha acima toalhas, xampus, sabonetes, roupas sujas, lençol e um modesto exemplar de Churchill, com suas 600 densas páginas de chumbo.

Na base do vulcão, ao recebermos cajados (2 por pessoa, de bambu) percebi que o buraco era mais embaixo. Que tipo de lugar nefasto será esse onde vamos ter que usar cajados? Sem tempo de explorar as possíveis respostas, era hora de mochila nas costas. Surpreendentemente, as mochilas dos outros pareciam mais leves, dada a graciosidade com que todos as vestiam. Bem, deve ser só impressão.

Fortes e másculos, impusemos um ritmo forte. Ele durou algo como 7 minutos.

Suor já empapava a camiseta e fazia a blusa de frio desnecessária. Baforidas semelhantes às de panelas de pressão eram a trilha sonora da subida. A terra ainda úmida e pedras soltas eram o castigo dos pés. E tudo parecia tão fácil nos planos...

... nos planos e na realidade da mulherada, que nos ultrapassavam aos poucos. E sem suar.

Incrédulos, nossas mentes investigavam as opções: seria o peso excessivo? Seria o Churchill? Ou as bananas que levávamos? Não, deve ser nossos calçados. Ahhhh, era evidente: eram as tais holandesas dopadas! Só podia ser isso. Anti-doping já!

Pra piorar a situação, logo na primeira parada de descanso, Gus jubila agregou, sem querer, uma das garrafas de água das holandesas. Só pra aumentar ainda mais o peso da mochila-mundo. Nem Atlas teve uma tarefa tão difícil ao sustentar o planeta nos ombros.

Subíamos, subíamos e subíamos. A vegetação se transformava, as nuvens passavam e a temperatura caía. E nós só pensávamos em quando a tortura ia acabar. Dores. E muitas. Panturrilha, coxa e glúteos. Até músculos inomináveis doíam, músculos que não existem na literatura de anatomia moderna.

Agora entendi os cajados. Destruídos todos os membros inferiores, os cajados ajudavam-nos a fazer o mesmo com os superiores. Parecíamos manquetas subindo. Mas subimos. Bem atrás das mulheres, mas subimos. E o ácido lático (e as câimbras) era nosso novo companheiro de viagem.

O cronômetro marcava 3 horas de dor e as holandesas, magrinhas, levinhas, pareciam flutuar no plano. Enquanto isso nós, homens grandes, fortes e maus, lutávamos contra a montanha... a cada passo pra frente, meio passo perdido no deslizamento da areia sob nossas passadas. Ó mundo injusto!

5 horas e o ritmo diminuiu. Teriam sido nossas preces transformadas em realidade? O ritmo diminuiu, exceto pelas famigeradas holandesas, que pareciam corredores somalianos de maratona, que com seu passo impassível que vão deixando todos os demais pra trás. A dor já era velha amiga e nem nos importunava mais. Depois de um tempo, a endorfina resolveu entrar em ação. Agora o frio bateu. Estávamos entre as nuvens e úmidos como uma esponja.

Quem foi mesmo que teve a idéia de subir o vulcão?

6 horas no cronômetro e ainda andando. Será que o céu está muito longe?

O corpo começou a se rebelar e não mais atender as ordens do cérebro. Descobrimos quem manda aqui!

Nesse mundo moderno já não existe elevador, escada rolante, lift de ski? O homem já não dominou a gravidade? Por que mesmo estamos subindo a pé essa montanha?

A dor chegou a tal ponto que ponderávamos arrancar nossas próprias pernas, sem anestesia. Enquanto procurávamos alguma coisa cortante para usarmos, chegamos. Estávamos no acampamento base. Acima das nuvens. Acima das cidades. Acima de todos.

O sentimento de megalomania foi suspenso pela vista de tirar o fôlego que se descortinou no horizonte. Era linda. Montanhas, vales e lagos era cobertos por nuvens que tomavam cores azul e vermelha. O vento frio e criptar da floresta nos lembravam de onde estávamos.

O homem é um ser de memória curta. Muito curta. Tão curta que em 10 segundos de espetáculo da natureza esquecemos as dores que nos carregaram até lá. Me faz lembrar da camiseta de uma corrida de 150km que fizemos: a dor é passageira, mas a glória é eterna.

De repente, fomos cercados por uma espessa névoa, que empalideceu a paisagem até transformá-la em uma capa branca. Tudo branco, pra todos os lados. Bem sem graça.

Hora do jantar: 4h30 da tarde! Bóia-fria total. Menu do dia: gororoba amarela radioativa, com pimenta ou sem. Mandei sem, mas mesmo assim suava como uma foca em Copacabana. Minhas feições trouxeram pânico para os que pediram apimentado, bem apimentado. Gus era um desses, que com vinho barato fez a pasta descer.

Terminamos a tempo de termos um pôr-do-sol inesquecível. As nuvens estavam vermelho-escuras e contrastavam com o azul e cinza da paisagem. Sessão de fotos. O Churchill se amarrou.

Sabe aquela historia de quantos elefantes cabem num fusqunha? Pois é, fizemos o paralelo moderno pra dormir na barraca. Tirando o Morgan e a Sarah que tinham uma barraca de casal, todos os demais teriam que compartilhar uma única tenda. Fácil. Com o vasto espaço, todos adotaram a confortável posição de múmia do Egito. Estática dentro do sarcófago. A única vantagem da múmia é que ela não precisava cheirar outros oito sovacos fedorentos em seu sono eterno. Que vantagem!

Cada movimento era atentamente capturado pelos outros, pois cada leve virada de corpo significava realocação de espaço. Qualquer semelhança com ônibus lotado na hora do rush não é mera coincidência. E aqui tentamos descansar o que sobrou do corpo.

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